sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Que relativos

Sugerido Por:Eliandro Miranda

Estou me repetindo muito ultimamente, mas espero que isso não seja dramático (os colunistas econômicos e os políticos, eu acho, se repetem ainda mais). É que, a cada dia, encontro mais exemplos interessantes que me obrigam a falar do mesmo problema e acho que é melhor não sonegar nada aos leitores.
No caso, volto às regências em orações relativas e, ao lado disso, porque não deixa apenas um caso especial do mesmo tema, volto ao "cujo", do qual falei duas vezes recentemente (aqui e aqui). Vou me esforçar para ser claro, talvez seja repetitivo. Assim, espero que o leitor, se discordar de mim, o faça por motivos justos, não por achar que digo o que não digo.
Em sua coluna dominical na Folha de S. Paulo do dia 31/08/2008, Juca Kfouri escreveu, não importa muito qual era o tema, que Luxemburgo maltrata a última flor do Lácio. E acrescentou, "mas, hoje em dia, neste Brasil, quem não a maltrata?".
Dessa passagem, destaco o verbo "maltratar" e a expressão "hoje em dia". Para que alguém diga que uma língua pode ser maltratada, é preciso ter dela uma determinada concepção. Tipicamente, supor que a língua teria estado em um estágio de perfeição (esse estágio é sempre antigo, anterior a qualquer que seja o tempo em que se fala) e que atualmente (ou hoje em dia) ela está sendo levada para o abismo pela falta de cuidado dos falantes. Isso faz supor que teria havido um tempo em que os falantes eram todos como Vieira, ou Ruy, ou Machado, ou (aqui você coloca o nome de seu clássico preferido). Ora, em todos os tempos as línguas foram faladas de formas variadas e sempre houve gente dizendo essa mesma coisa: que agora ela está perdida.
"Maltratar" lembra que várias metáforas relativas a esse fato parecem vir do campo da moral, mais exatamente da moral sexual. As línguas são freqüentemente comparadas a donzelas, que os maus falantes corrompem, conspurcam, agridem. Maltratam? Alguns falantes seriam sádicos, por que não? Não se escreve que eles f *** com as línguas, mas a idéia é essa. Ora, essa pureza nunca existiu, nem a das línguas nem, desconfio, a das donzelas (como bem se sabe, pelo menos desde Freud).
É relevante dizer que Juca Kfouri escreve "bem" - isto é, que é um sujeito culto, cujos textos estão claramente entre os que podem ser considerados bons segundo as regras na dita norma culta. Não comete deslizes, pelo menos não desses que "doem nos ouvidos" (na verdade, não agüento mais ouvir gente de péssimos ouvidos dizendo que certas construções doem nos seus ouvidos; se doerem, devem ser coisas boas...).
Corta.
O mesmo Juca, dias depois, no mesmo espaço do mesmo jornal, escrevendo sobre Fofão, deixou escapar que "mais do que admirar e respeitar, Fofão é daquelas pessoas que você passa a gostar". Os plantonistas e caçadores de erros, os que estão preocupados com a pureza da última flor do Lácio, diriam que não é assim que se diz, Juca. Não se diz "gosto da Fofão?". Não é verdade que quem gosta gosta de? Se você gosta de, Juca, então Fofão é uma daquelas pessoas DE QUE(M) você passa a gostar". Entendeu, Juca? Não esqueça o DE, Juca!!!
Pois eu diria que não, que não é assim, ou que não é necessariamente assim. E que, não sendo assim necessariamente, Juca não está maltratando a língua pátria, ou melhor, mátria, que esse negócio de conspurcar é mais com as mulheres, ou não?
Por que não?, perguntarão. Porque essa regrinha "se digo gosto de, então tenho que dizer de que gosto" é só mais ou menos correta. É que são muitos os casos nas línguas em que esse tipo de raciocínio não vale.
Por exemplo: posso dizer "tenho" (com (t) no começo), mas "tinha" (com (tch) no começo). É que, mudando o contexto (e/i), o (t) pode mudar de forma". Digo "Eu vejo", mas digo "me vejo", isto é, se "eu" muda de função, muda de forma. Então, por que não pode ocorrer "gosto de queijo", e "queijo é uma coisa que eu gosto" (em vez de "de que eu gosto")? O "objeto" foi substituído por um pronome (aceitemos isso, vá) e foi "deslocado" para antes do verbo, e nessa nova posição, ele aceita a queda do "de". Veja-se que é só nesses casos que essas preposições caem. Então, é uma queda regrada!
Esse um argumento é de tipo estrutural. Mas, nessas questões de mudança lingüística, o que vale mais são os argumentos históricos e sociais. No caso, o argumento forte é o seguinte: se alguém como Juca esquece o "de", então o "de" já não estava mais lá, não foi propriamente esquecido.
Fatos como este mostram que a variação não decorre apenas do grau de letramento do falante. Mesmo gente fina pode abandonar as regras ditas "corretas". E isso é sempre um fato muito sintomático: quando elas o abandonam, de fato não há mais erro. Porque a base desse erro não é lingüística, gramatical, é social! Sempre foi assim na história das línguas. Esse "erro" nem é mais percebido por gente culta como o Juca, que percebe outros, como alguns do Luxemburgo, porque esses são distribuídos por outros critérios sociais...

Sírio Possenti
De Campinas (SP)
Retirado do site: terramagazine.terra.com.br . Publicado em 18/09/2008.

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